Muito se fala sobre a Inquisição, mas pouco se compreende da sua estrutura mais íntima, dos seus rituais, da sua linguagem e dos seus bastidores. Por trás das fogueiras, havia processos. Por trás dos processos, havia silêncio, coerção e uma liturgia burocrática da destruição. É sobre isso que este artigo trata: a anatomia de um julgamento pelo Santo Ofício.

O texto que você vai ler a seguir mergulha em documentos reais, transcrições fiéis e detalhes que poucos conhecem. Ele se baseia na pesquisa e no conteúdo do livro Leilui Nishmat, de Jacqueline Passy (Shaar Editora), que traz à tona o processo real de Felipa Mendes, uma jovem brasileira, acusada de judaísmo, presa e julgada pela Inquisição portuguesa em 1733. A partir do caso de Felipa, o que emerge não é apenas a história de uma ré, mas o retrato de um sistema inteiro dedicado a julgar não apenas ações, mas consciências.

Auto da Fé no Terreiro do Paço, Lisboa
Auto de Fé no Terreiro do Paço, Lisboa. Século XVIII.

Este post é, portanto, um convite à escuta. Escutar as vozes que a história tentou apagar. Escutar os documentos. Escutar o que ainda arde nas cinzas do silêncio inquisitorial.

“E que a ré não tem feito inteira e verdadeira confissão de suas culpas, nem satisfatória, antes mulher diminuta, dissimulada e fingida [...]”

(Auto da Inquisição de Felipa Mendes, 1733)

As fogueiras da Inquisição já não queimam mais. Mas suas cinzas seguem quentes, guardadas em arquivos, transcritas em páginas frias e meticulosas. É nos processos inquisitoriais, silenciosos como túmulos e meticulosamente organizados, que ainda ecoa a maquinaria cruel da fé institucionalizada.

Cela inquisitorial
Cela inquisitorial

Ler um processo desses não é um exercício de arqueologia da intolerância. É um confronto com a linguagem como ferramenta de poder, com a religião como justificativa de destruição, com a burocracia como cúmplice da crueldade.

O que ali se narra não é apenas a queda de uma pessoa. É a coreografia metódica de uma destruição subjetiva: jurídica, espiritual, familiar e emocional. Uma desconstrução da identidade em nome de uma salvação que, no fundo, era apenas obediência.

A realidade que parecia enterrada nos autos ganha corpo, voz e rosto, com todas as suas complexidades, através do trabalho meticuloso da autora Jacqueline Passy. O que se lê ali, página após página, é a anatomia cirúrgica da fé institucional em sua face mais sombria.

O Confisco como Prólogo: Antes da Culpa, a Punição

A Inquisição Portuguesa, fundada em 1536, tinha uma missão clara: erradicar a heresia e, principalmente, a "heresia judaizante" entre os cristãos-novos (judeus convertidos à força ao catolicismo e seus descendentes). O processo inquisitorial, portanto, não investigava crimes como roubo ou assassinato. Investigava a alma.

O processo inquisitorial começava antes do julgamento. A denúncia bastava.

Não era preciso prova, nem flagrante, nem crime no sentido moderno. Bastava a suspeita, geralmente anônima, de que alguém “judaizava”. Isso incluía práticas como acender velas na sexta-feira, jejuar fora do calendário católico, evitar carne de porco ou recitar orações ou frases alheias ao cristianismo.

Mas o primeiro ato real de violência não era físico. Era econômico. Ao ser presa, a pessoa perdia tudo: casa, bens, livros, utensílios, roupas. Tudo era “sequestrado”, termo jurídico, seco, mas carregado de brutalidade: “Foram todos sequestrados na ocasião de sua prisão e das ditas suas irmãs.”

Era o início do esvaziamento completo: a ré não era só isolada, era despossuída. Sem bens, sem defesa real, sem meios de sobrevivência. O processo se encarregaria do resto.

Silêncio como Culpa, Memória como Prova

Ao ser presa, Felipa, como tantos outros, foi isolada. A ela foi atribuído um “curador”, pois era menor de 25 anos. Isso porque, legalmente, ela não tinha sequer idade para se defender sozinha: “Foi-lhe dado um curador para lhe emprestar autoridade para a dita ré poder responder em juízo.”

Ela perdeu, em um único ato, a liberdade, a voz e o nome.

O réu era coagido a jurar sobre os Evangelhos que diria "toda a verdade". Mas a verdade que a Inquisição queria ouvir já estava determinada. O processo de Felipa mostra a engrenagem perfeita dessa coerção. Ao hesitar ou não entregar nomes e detalhes suficientes, ela não era vista como inocente. Era acusada de "resistência espiritual".

“Foi-lhe dito que em suas confissões, tem muita falta e diminuições [...] pelo que de novo, Admoestamos com muita claridade, [...]”

Era assim que a memória se transformava em campo minado. O silêncio era interpretado como culpa. A omissão, como herege resistência. E o cansaço, como desafio à fé.

A Coreografia do Medo: Admoestações e Ameaças Veladas

O vocabulário dos processos inquisitoriais é uma aula sobre como a linguagem pode ser tecnicamente neutra e moralmente monstruosa. Expressões como “admoestada em forma”, “instada com caridade”, ou “advertida com clareza cristã” aparecem com frequência. Soam benignas. Mas eram formas codificadas de coerção.

“Foi outra vez admoestada em forma e mandada a seu cárcere.”

A Inquisição construía seu caso de forma metódica, usando a aparência de um corpo legal completo, mas sem a sua essência. Não havia presunção de inocência nem direito real ao contraditório.

  •  Genealogia: Rastreadores de linhagens em busca de "sangue cristão" ou "mancha judaica".
  •  Publicação de Provas: Leitura de depoimentos colhidos de familiares e conhecidos, sem que o réu pudesse confrontar os acusadores. A defesa, quando existia, era apenas simbólica. Os "advogados" eram, na verdade, membros do próprio tribunal que não podiam fazer nada que prejudicasse o Santo Ofício.
  •  Acórdão: O parecer final da mesa inquisitorial, que transformava o verniz jurídico em uma sentença teológica.

Ao final do processo, a avaliação de Felipa é brutal: "A ré, usando de mau conselho, não quis fazer [a confissão completa] por ser, como ainda agora, herege, apóstata da nossa santa fé católica [...] pelo que não merece que com ela se use de misericórdia alguma, mas de todo rigor da justiça."

A sentença não era sobre o que Felipa fez, mas sobre quem ela era. E a essência de Felipa, para a Inquisição, era a de uma "ficta, falsa, dissimulada confitente diminuta, impenitente". Isso não podia ser perdoado.

Salvação negociada: A Cerimônia do Terror

Ao final do longo processo, a ré se “arrepende”. Ou pelo menos assim o tribunal registrou. Ela não foi para a fogueira, mas a sua sobrevivência exigiu que ela negasse tudo o que era: “[...] por ela apresentar confissão e sinais de arrependimento [...] irá ao Auto de Fé Público, na forma costumada, onde ouvirá sua sentença [...] terá hábito penitencial perpétuo [...] e abjurará de seus erros em forma.”

Foi condenada a usar o sambenito, o traje de humilhação pública, excluída da vida social e marcada para sempre como uma herética convertida, desaparecendo assim seu nome, sua fé e sua identidade. A culminância de todo o horror era o Auto de Fé, um espetáculo público de perdão e terror, onde a Inquisição exibia seu poder e reafirmava sua autoridade perante a comunidade.

Por Que Tudo Isso Importa?

Porque essas estruturas não são apenas do passado. A história do processo de Felipa Mendes ainda vive nos arquivos, nas ausências que deixou, nas famílias dispersas, nas memórias apagadas. E, sobretudo, porque ler um processo inquisitorial é escutar uma voz sendo sufocada em tempo real.

O caso de Felipa nos lembra que a fé pode ser usada tanto como um farol para a alma quanto como uma arma para aniquilá-la. Uma entre tantas jovens nascidas no Brasil colonial, ensinada na Lei de Moisés por sua mãe, levada à força ao outro lado do oceano para responder por ter rezado, jejuado e amado uma fé ancestral.

No livro "Leilui Nishmat: Em Elevação de sua Alma e Os Judeus de Sinal", essa voz é devolvida ao leitor. Não como mártir, nem como símbolo, mas como o que ela foi: uma pessoa real, cuja história nos permite entender as entranhas da Inquisição.

Ler um processo inquisitorial não é apenas ler o passado. É testemunhar uma alma sendo desfeita em tempo real.

Quem quiser entender a Inquisição além dos mitos precisa encarar seus autos, sua linguagem seca, suas sentenças frias e os nomes apagados.

Conheça o livro Leilui Nishmat e leia, na íntegra, o processo real que o Santo Ofício tentou apagar, mas que a memória histórica se recusa a esquecer.

Leilui Nishmat: Em Elevação de Sua Alma & Os Judeus de Sinal

Do silêncio da Inquisição à voz da memória.
A história que forjou os Judeus de Sinal e os ecos dos cristão-novos.

 

Capa do livro Leilui Nishmat
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